BERNA REALE - ARTISTA PARAENSE APRESENTA VÍDEOS- INSTALAÇÕES ARREPIANTES NO MUSEU DE ARTE DO RIO (MAR)
Berna Reale, em frente à imagem do vídeo Palomo, uma das instalações que ela fez para o a estréia do MAR. |
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RIO - Em janeiro deste ano, Berna Reale adotou dez porcos. Era preciso criá-los juntos para que não se “estranhassem” no ato da performance que a artista planejava fazer com eles: os porcos a puxariam num cortejo por ruas de terra de Icoaraci, distrito pobre de Belém, a 20 quilômetros do Centro da capital. De fevereiro até julho, quando finalmente gravou a performance batizada de “Soledade”, Berna visitou os porcos, numa fazenda, pelo menos a cada 15 dias. À tarde, passeava com os animais e testava sua habilidade em puxar a biga, espécie de carro do Império Romano onde ela, senho franzido e postura ereta, estaria.
Enquanto cuidava dos porcos, Berna articulava com o Instituto Médico Legal (IML) de Belém o empréstimo de 344 ossos de 40 esqueletos de vítimas de homicídio para outra performance. Nesse caso, ela própria carregaria os ossos, numa espécie de carrinho de mão, pelas ruas de Jurunas, bairro com alto índice de criminalidade na capital paraense.
Os cortejos que ela fez pela cidade, sob olhares curiosos, foram pensados para o Rio, onde serão exibidos em vídeo. Berna inaugura nesta terça-feira, às 10h, no Museu de Arte do Rio (MAR), sua primeira mostra individual fora de Belém, cidade onde vive e trabalha — não só como artista, mas como perita criminal. Sua obra, de incontestável tom político, é um tanto descoberta de Paulo Herkenhoff, curador do museu, com quem a paraense troca cartas há 15 anos.
Na semana em que a cidade verá pipocar exposições, na esteira da feira ArtRio, Herkenhoff optou por ocupar o MAR com duas exposições de cunho político: o museu também abre nesta terça, em sala vizinha à dos cinco vídeos de Berna, uma individual de Yuri Firmeza.
Se a artista paraense carrega ossos humanos para tratar da violência física ou se deixa levar por porcos para abordar a submissão e o abuso de poder, o cearense Firmeza se volta para o que chama de “dobras do tempo”, unindo entulho de remoções no Morro da Providência, vizinho ao MAR, às descobertas arqueológicas feitas durante a construção do museu, ele próprio erguido sobre onde, um dia, estiveram outras duas comunidades, a do Morro do Senado e a do Morro do Castelo.
— Há duas linhas curatoriais importantes para o MAR: a história da violência na Amazônia e a precariedade transformada em potência no Ceará. Vejo o Nordeste como ferramenta para a transformação do Brasil — explica Herkenhoff. — Nós não trabalhamos com o modelo mercantil da arte, embora as aberturas sejam durante o período de uma feira na cidade. Somos um museu de processos, e não de eventos — completa o curador, referindo-se ao boom de exposições comerciais nesta semana, que aproveitam a presença do público (comprador) da ArtRio.
“A procura do mercado me assustou”
Mesmo Berna, que por sua obra provocativa recebeu a alcunha de “Marina Abramovic do Pará” — em referência à performer sérvia —, verá sua obra política ser “absorvida” pelo mercado nos próximos dias. Ela conta que, depois de propostas de três galerias de São Paulo, fechou contrato com a Millan, que mostrará em seu estande na ArtRio fotos da performance “Palomo” (2012), cujo vídeo é exibido agora pelo MAR. Nele, Berna, de focinheira, desfila pela principal avenida de Belém num cavalo tingido de vermelho-sangue.
— A procura do mercado me assustou. Me deu pânico lidar com isso. É tudo muito profissional, formal, coisas com que eu não estava acostumada e ainda não estou. Vou falar para a galeria que o processo só me satisfaz se eu também puder dar meus trabalhos. Não sou acostumada à venda, e me angustia muito falar em preço — diz ela, já no Rio. — Vivo numa cidade que não tem mercado, e estou chegando velha ao mundo da arte. E que bom que cheguei velha, porque sou menos ambiciosa. Não tenho a pretensão de ser um Damien Hirst ou uma Marina Abramovic. Estou com saudade de fazer perícia.
Das cinco videoperformances que expõe no Rio, apenas uma, de 2011, não foi feita especialmente para o MAR. Trata-se de uma obra sem título, em que, carregada por dois homens, a artista percorre oito bairros de Belém — nua, pés e mãos amarrados a um ferro, como se fosse corte de carne rumo ao açougue.
Como Berna, Yuri Firmeza optou por criar uma obra inédita para o MAR. Há mais de um ano, ele estuda a história da região que um dia foi aterrada e teve morros removidos — em processo que, para ele, se assemelha ao que ocorre hoje, no projeto Porto Maravilha, de revitalização daquela área. O artista une, numa grande instalação, peças arqueológicas (como telhas, azulejos e cordas) descobertas no restauro do Palacete Dom João VI (que abriga o MAR) e entulho do Morro da Providência, onde casas são derrubadas em nome do que ele chama “de nova assepsia” daquela região.
O debate político se amplia, em seguida, para uma ode ao tempo cíclico, com um vídeo em que a avó do artista, portadora de Alzheimer, conta, repetidas vezes, feitos da infância e da juventude, mas se confunde sobre fatos recentes.
— É como se a memória de criança fosse arqueologia, e a memória recente, entulho — diz Firmeza, que ainda inclui na mostra vídeos institucionais sobre as reformas na Zona Portuária e outro em que a câmera percorre de perto a pele de um elefante. — Parece que estamos no eterno retorno da história.
Fonte: Jornal O Globo
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